Capítulo 01: Cruel Mudança | Conto: Cruel Sedutor

I

Cruel Mudança

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ohn F. Kennedy disse uma vez que a ‘mudança é a lei da vida’. A cada passo, a cada segundo, a cada minuto a mudança é a única tangente. A verdade é que a mudança é a coisa mais difícil que o ser humano pode passar. Gostamos de pensar que mudamos sempre, mas a verdade é que quando não estamos presos ao passado nós nos pegamos preocupados com o futuro. Pensamos nos erros que cometemos e no que poderíamos ter. Isso não é mudança. Isso é estar acomodado e eu não sou diferente da maioria. Tive que aprender que é inútil se preocupar com coisas que não controlamos. Coisas que não podemos mudar. Mudei muito em mim nos últimos anos. Em minha experiência pessoal posso concluir que a pior mudança é aprender a viver o presente. O passado já se foi, o futuro não chegou, mas o presente está acontecendo e eu estava perdendo.

A culpa não foi minha. Sei que é clichê culpar as outras pessoas por meus erros, mas eu estou sendo sincero quando digo que a culpa não foi minha. Quer dizer, a culpa foi minha porque eu deixava. Compactuava e permitia. Deixe eu me explicar melhor. Minha família me fez viver no futuro. O passado e o futuro eram as únicas coisas com as quais eu convivi. O passado representava o meu ‘antigo eu’ e o futuro o meu ‘novo eu’. O problema disso é que eles tomaram as decisões por mim como se eu tivesse os mesmos medos e frustrações deles. Às vezes acho que algumas pessoas não deveriam ter filhos, pois não sabem que cada ato, palavra, ação ou lembrança pode arruinar a vida deles.

Eu já tive que lidar com meus próprios medos como, por exemplo, medo de cobras. Eu sempre tive pavor de cobras. Por mais irracional que seja eu sempre tive medo de tubarões e piscinas. E o pior de tudo: um tubarão dentro de piscina. Desde criança quando meu irmão mais velho me assustava com o filme ‘Tubarão’. Ele me obrigava a assistir. Sempre tive medo de falar em público. Medo de ficar sozinho no mundo. Talvez esse seja o único medo verdadeiramente irracional porque eu nunca estive sozinho. Até dentro da barriga da minha mãe eu tive uma companheira. Minha irmã gêmea Casey.

Ela sempre foi minha grande companheira. Quando crianças nós brincávamos juntos, dormíamos juntos e vestíamos sempre as mesmas cores. Nós meio que tínhamos orgulho de sermos gêmeos. Lembro que quando tinha cinco anos minha mãe sempre me dizia – ‘Stanley, você nunca estará sozinho. Por mais que você esteja longe, se sinta solitário e ache que não se encaixe nesse mundo você sabe que tem uma alma gêmea. Você dividiu o ventre com ela.’ Sempre gostei das analogias da minha mãe. Na verdade é a coisa da qual eu mais sinto falta nela.

As coisas mudaram quando fiz sete anos. Quando fiz sete anos sai do meu colégio para um novo. Por algum motivo não tinha amigos nessa nova escola. Eles sempre corriam gritando quando me aproximava. Casey por outro lado sempre teve amigas, mas no colégio preferia passar o tempo comigo. Especialmente no recreio para que eu não me sentisse sozinho. Ela sempre esteve ao meu lado. Sempre. Ela sempre foi meio que uma irmã super protetora querendo bater nos valentões.

A primeira vez que contei ao meu pai sobre as crianças correndo de mim no novo colégio eu vi que algo mudou dentro dele. Meu pai me abraçou, disse que me amava e pela primeira vez eu o ouvi dizer um palavrão. Eu nunca esqueci. ‘Que se fodam’. Foi o que meu pai disse com lágrimas nos olhos. Tentando ser forte. É engraçado com nossa mente seleciona quais lembranças da infância descartar. Essa é uma das coisas que nunca esqueci e sei que nunca esquecerei.

Mais tarde quando fiz treze anos percebi que o que minha mãe dizia sobre sempre ter uma alma gêmea talvez não fosse verdade. As amigas da minha irmã vinham para casa para brincar com ela e toda vez que me viam elas me chamavam de ‘aberração’. Eu procurava não me importar e eu realmente não me importava. Até o dia em que elas fizeram isso na frente de Casey. Não sei se eram os hormônios da puberdade, mas por algum motivo ‘ser popular’ passou a ser mais importante do que ser alguém descente. Mais importante do que ser minha alma gêmea. O dia em que ela me chamou de ‘garoto lagosta’ para fazer as amigas rirem foi o dia em que aprendi que eu estou sozinho. Sempre estive sozinho. Inclusive dentro do ventre.

Aos dezesseis anos Eu era o melhor aluno na escola. Ao contrário da minha irmã que ia de mal a pior. Enquanto eu afundava as caras no livro. Ela estava com as amigas e os namorados. Sempre chegava tarde em casa, respondia minha mãe, desrespeitavam eu pai e pouco a pouco mostrava que ela vivia o presente intensamente. Mas viver no presente não quer dizer que você deve se esquecer de que tem futuro. Ela usava roupas curtas, falava gírias dentro de casa e às vezes chegava bêbada.

Na época nosso irmão mais velho – Nick – tinha vinte e sete anos e estava na universidade então não tinha muito contato com ele. Nem meus pais o que acabou fazendo com que eles criassem um carinho especial por mim. Enquanto Casey estava fazendo algo de errado eu estava sempre por perto. Ajudava no que podia nos deveres de casa e de vez em quando me arriscava na cozinha. Acontece que se sou um ótimo cozinheiro. Minha mãe era contadora em uma firma e meu pai trabalhava em uma fábrica de carros. Ele se aposentou cedo devido a um acidente que comprometeu o movimento da sua perna esquerda o que faz com que ele ande com apoio de uma bengala de madeira.

Minha mãe trabalhava fora então eu sempre estava com meu velho. Apesar de ter vocação para ser ‘chef’ eu não segui esse sonho. Meu pai pediu que eu não me afastasse até fazer minha cirurgia então não fui para a universidade. Quando Casey começou a decepcioná-lo com decisões burras e atitudes imaturas ele acabou depositando todo o amor em mim. Não que ele não amasse minha irmã, mas ele sempre achou que nós dois seriamos iguais, mas a verdade é que nós éramos muito diferentes. Acho que foi nessa época que eu descobri que eu podia ser uma aberração por fora, mas Casey era uma aberração por dentro. Pelo menos era assim que nos sentíamos.

Nós nascemos e crescemos na cidade de Coala, Flórida. Uma cidade próxima de Orlando onde ficam os parques da Disney. Na mesma casa, no mesmo bairro por todos esses anos. A minha auto descoberta demorou um pouco. Tanto o fato de ser gay – o que minha família aceitou sem relutância – quanto a descoberta que me fez perceber que precisava criar asas e voar por mim mesmo. Meu pai depositou seus sonhos e esperanças em mim, mas eu precisava sair de lá. Queria conhecer o mundo. Ele criou muros ao meu redor. Claro que esses muros afastaram o mal, mas esses mesmos muros me afastaram do mundo. Sempre vivi para agradar minha família. Por mais que meu pai, minha mãe e meu irmão Nick amassem Casey eles meio que deixaram ela de lado. Isso fez com que ela sempre fosse um pouco independente. Por mais que as esperanças e sonhos dela não fossem as que meu pai e minha sonharam pra ela, ela vivia bem consigo mesmo. Aos vinte e um minha irmã conseguiu um emprego no parque da Universal Estúdios em Orlando e se mudou para morar em um pequeno apartamento. Eu não senti saudades de Casey. Senti inveja. Eu também queria me aventurar como ela. Porque não podia? Por causa da minha mão?

Sabia que argumentar com minha família sempre foi inútil especialmente sabendo que estava chegando próximo ao dia da minha cirurgia. Foi quando decidi fugir de casa. Naquele dia meu irmão Nick e alguns parentes apareceram para comemorar o nosso aniversário de vinte e quatro anos. Alguns primos, tios e vizinhos. Havia dois bolos, mas Casey não apareceu. A primeira vez que passávamos o aniversário longe um do outro.

Naquela noite enquanto todos dormiam juntei minhas coisas em uma mochila e roubei alguns trocados da carteira do Nick. Roubei o cartão do banco e sai de casa. Claro que eu pretendia pagar meu irmão pelo dinheiro. No futuro quando eu tivesse condições. Chamei um Uber que parou uma quadra acima da de onde morava e ele me levou a um shopping. Ao chegar saquei um pouco do dinheiro que meu irmão tinha na conta. Com o que peguei na carteira dele deve ter dado um pouco mais de quatro mil e seiscentos dólares. Comprei uma passagem para Orlando e fui com a cara e a coragem. O único presente de aniversário que eu trouxe comigo naquele dia foi meu par de luvas. Meu irmão que me deu. Luvas de couro marrom customizada especialmente para minhas mãos. Decidi usar só a mão direita.

O médico disse que o meu caso era uma raridade. Irmãos gêmeos e um dos gêmeos com uma má formação genética. Eu não era o primeiro da família a nascer daquela forma. Ao contrário da minha irmã que nasceu perfeita eu nasci com uma síndrome chamada de Ectrodactilia. Talvez alguns não saibam o que é, mas eu nasci com apenas três dedos em cada uma das mãos. Era como se três dedos de cada mão tivessem sido esmagados e grudados em uma coisa estranha que parecia um dedo deformado. No meio disso o dedo e o dedão eram um pouco maiores e mais grossos do que o de uma pessoa com ‘dedos normais’. Quando era pequeno meu pai e minha mãe juntaram dinheiro o suficiente para fazer cirurgia em uma das minhas mãos. Depois de um tempo eles perceberam que eu era canhoto e aos três anos fiz a cirurgia na mão esquerda.

Segundo minha mãe e meu pai eu ‘tive a sorte’ de nascer com os ossos e a cartilagem necessária para ter os cinco dedos. Tudo o que precisavam fazer é separar os dedos durante a cirurgia, reconstruir os ossos e eu tinha que usar um aparelho na mão que me provocava muita dor. Uma dor lancinante. Lembro-me de passar noites acordado chorando. Todas as noites alguém tinha que girar uma rosca para fazer com que os ossos se colassem juntos. Se valeu a pena toda essa dor? Não sei. A mão direita continuava com três dedos e eu não tinha vontade de mudar isso. Não estava disposto a passar por aquela dor de novo apenas para ser ‘normal’. Se tem uma coisa que eu aprendi é que não importa o quanto você mude seu exterior isso não conserta os erros do seu interior.

Meu irmão Nick acabou levando a minha síndrome consigo até a vida adulta. Ele tinha se formado em medicina e se especializado em cirurgia plástica. Depois de anos esperando e se especializando ele prometeu a si mesmo que seria ele a fazer a cirurgia da minha mão direita. A verdade é que ela estava marcada para oito dias depois do meu aniversário de vinte e quatro anos. Isso só me motivou a fugir. Eu não queria realizar a cirurgia. Ficar anos e anos com um aparelho na mão me provocando dor, dependendo das pessoas para me dar banho e ajustar o aparelho todos os dias enquanto eu agonizo em dor apenas para me adaptar a um mundo que encontraria outro defeito em mim de qualquer maneira. Preferia viver com uma ‘garra de lagosta’ do que não viver.

É como John F. Kennedy disse uma vez: ‘a mudança é a lei da vida’. Você não tem escolha quanto a mudar, mas pode escolher quais mudanças quer e foi essa mudança que eu decidi fazer. Depois de tirar o dinheiro do meu irmão eu quebrei o cartão dele em dez pedaços e joguei na lixeira. Eu sabia que eles iriam me procurar então fiz questão de deixar o cartão para trás. Do contrário eles me rastreariam.

Estava em Orlando á pouco mais de dois meses. Consegui um apartamento bem barato. Tudo o que tinha que fazer era dividir esse apartamento com uma colega de quarto. Cada um pagava a metade. Mesmo assim precisava encontrar logo um emprego. Não passou por minha cabeça pedir ajuda a minha irmã. Eu queria andar sozinho. Sempre que saia de casa usava a luva de três dedos de couro que meu irmão me deu na mão direita. Eu não queria chamar a atenção das pessoas. Era bom me sentir ‘normal’ de vez em quando. Sentir como se fosse parte do grupo. Sentir que as pessoas olhavam para mim porque me acharam bonito e não porque tinham pena de mim.

Estava difícil conseguir emprego. Não tinha experiência nenhuma e ninguém parecia estar disposto a me dar uma chance de ter experiência. Tudo o que tinha era o diploma do colegial. E toda vez que estava em uma entrevista alguém pedia para eu tirar a luva e em seguida eu ouvia ‘ligamos para você’, ‘Aguarde nosso contato’ ou então a melhor de todas: ‘você não se encaixa no perfil no momento, mas vamos te ligar caso outra vaga apareça’. Tentei conseguir emprego em algum restaurante como auxiliar de cozinha, mas as pessoas olhavam para minha mão e tudo o que sentiam era nojo. Elas tentavam esconder, mas eu conseguia ver na forma que elas engoliam em seco e sorriam falsamente para mim antes de me dar falsas esperanças que em minha opinião é a maior crueldade de todas.

Era quarta-feira á tarde e eu já tinha distribuído vários currículos pela cidade. A pé é claro. Não queria gastar todo o dinheiro que roubei do meu irmão atoa. Tinha que pagar o aluguel por um bom tempo e não sei se ia conseguir um emprego tão cedo. Estava cansado então decidi sentar em um banco sob a sombra de uma grande árvore. Aquele era o Parque do Lago Eola. Era um lugar bonito. Um ponto turístico. O lago era enorme e ‘dar uma volta nele requeria certo fôlego, mas a paisagem compensava’. Uma mulher fez esse comentário no TripAdvisor. O lago tinha uma bela área verde e um jardim japonês. No centro do lago uma fonte gigante jorrava água em cores diferentes. Havia vários prédios comerciais. Prédios lindos de cor acinzentada e brilhante. Aquele era o centro de Orlando.

Várias pessoas andavam de pedalinho no lago. Alguns namorados, pais e filhos, amigos, colegas. Todos tinham algo em comum. Estavam felizes. Eu podia ver mesmo de longe. Havia patos andando de um lado para o outro, cercas vivas e a estatua de uma mulher deitada em meio às flores vermelhas. Era um lugar lindo. Era a primeira vez que ia naquele parque em todos aqueles meses e eu não me sentia como se estivesse realmente lá. Estava desgastado e cansado. Imaginar fazer as coisas sozinho é mais fácil do que realmente fazer. A vontade de desistir me perseguia.

No meu primeiro dia em Orlando meu celular tocava sem parar. Meu pai, meu irmão, minha irmã, minha mãe e números desconhecidos. Eu sabia que eles estavam preocupados, mas tinha deixado um recado dizendo que ia viajar por um tempo, que eu ia ficar bem e pedia desculpas por ter roubado meu irmão. No segundo dia joguei o meu celular fora e comprei um descartável. Pelo menos até ter dinheiro para comprar um celular descente. Não queria que eles me rastreassem.

O pior é que em dois meses já tinha gastado metade daquele dinheiro então agora estava economizando o máximo que podia. Comia apenas uma vez por dia e andava a pé. A minha colega de quarto Miyako – mais conhecida como Mya – meio que tinha fugido da casa dos pais para Orlando. Pelo o pouco que Mya e eu conversamos ela me disse que a mãe e o pai eram muito tradicionais e ela se considerava um ‘espirito livre’. Nunca sentiu uma forte conexão com suas raízes. Se dependesse da família ela teria que seguir os passos da profissão do pai: medicina. Por fim teria que se casar com alguém com os mesmos costumes e valores da família. E esse nunca foi o sonho dela. Ela sempre gostou de direito e como não tinha dinheiro para pagar pela universidade ela pagava por um curso de Justiça Penal na Escola Técnica da Flórida.

Ela veio de Michigan. Bem mais longe do que eu. Como nossas histórias eram bem parecidas eu não podia atrasar o aluguel. Éramos dois ferrados. E por mais que ela trabalhasse como recepcionista em uma Clínica Privada eu não podia abusar da bondade dela de dividir o aluguel com um homem. Ela disse que não teve outra opção. Além do mais Mya disse que tinha spray de pimenta e tinha feito aulas de defesa pessoal. Se eu tentasse algo eu sairia machucado. Ela era esse tipo de excêntrica.

O relógio marcava quase quatro horas da tarde e mais um dia estava acabando sem muito sucesso. Ainda tinha um par de currículos na mão. Decidi dar mais uma volta no centro perto daqueles prédios em frente ao lago para ver se tinha sorte. Levantei-me e caminhei pela grama dando a volta no lago procurando por uma saída que desse do outro lado. Depois de quase quinze minutos de caminhada e passar por vendedores de pipoca, algodão doces, um bocado de pombas Zenaida e alguns patos encontrei a saída.

Caminhando pelas ruas eu via que as pessoas olhavam torto para minha mão. Acho que ficavam pensando no que aquela luva escondia. Tentava ignorar os olhares e tentava me focar mais nas vagas de emprego. A essa hora do dia todos os restaurantes já haviam fechado e só abririam mais tarde para o horário do jantar. Sei que devia considerar outras opções, mas eu precisava me sentir um pouco mais perto do meu sonho. Precisava começar em um restaurante para saber qual era a sensação. Estava suado e morrendo de sede. Decidi ir a uma lanchonete pedir por um copo de água. Em frente a um prédio que ficava de costas para o lago encontrei uma lanchonete com algumas cadeiras de fora. Havia pessoas sentadas conversando, tomando café e rindo a toa. Algumas de óculos escuros, chapéus e largos sorrisos no rosto.

- boa tarde – falei entrando na lanchonete e me sentando próximo ao balcão – você pode me dar um copo de água, por favor? – falei ofegante.

- Não. Você tem que comprar – falou a atendente mal educada – quatro dólares sem gás, seis dólares com gás.

- nossa… quatro dólares por um pouco de água? Você não pode simplesmente me dar um copo de água? Pode ser da torneira e não precisa nem estar gelada – falei passando a mão com a luva na testa limpando o suor.

- não posso – falou a mulher – regras da casa. Ou compra ou cai fora.

Alguns clientes ficaram olhando para mim com um olhar de reprovação. Um rapaz de vinte e quatro anos, cabelos negros e olhos castanhos implorando por um pouco de água. Eu sabia que ninguém era perfeito, mas aquele olhar de nojo só porque tive a audácia de pedir por um copo de água da torneira isso te deixa com muita raiva. Olhavam para mim como se fosse errado entrar em uma lanchonete e pedir por um pouco de água. Já tinha passado por situações semelhantes antes e sabia exatamente o que fazer.

- moça eu só quero um copo de água – falei tirando a luva escondido e colocando-a no bolso da calça.

- o que está acontecendo aqui? – perguntou o gerente chegando próximo à atendente. Antes de ela responder eu a interrompi.

- eu te falo o que está acontecendo. Sua funcionária está se recusando a me atender por causa da minha deficiência – falei apontando para ela com a garra. As pessoas do lugar se assustaram, inclusive a atendente – eu tenho dinheiro – peguei uma nota de cinquenta dólares e joguei no balcão – devia processar esse lugar.

- senhor me perdoe, eu tenho certeza de que esse é um mal entendido – falou o gerente.

A atendente ficou tão atordoada com tudo que não se atreveu a dizer nada. Essa era a única coisa boa em ter uma garra.

- tenho certeza que sim. Eu vou processar esse lugar – falei alto.

- senhor será que podemos conversar em particular?

- claro – falei fazendo questão de pegar a nota de cinquenta de volta. Eu estava contando os centavos. Não podia deixar aquela nota lá de jeito nenhum.

O gerente me chamou para dentro da cozinha e então olhou para mim com aquele olhar. Engoliu em seco e forçou um sorriso.

- senhor quero pedir desculpas por qualquer inconveniência. A atendente será punida por…

- ela não fez nada – falei pegando a luva e colocando-a na mão.

- o que quer dizer?

- ela não se recusou em me atender. Ela foi mal educada, mas fora isso a culpa foi minha. Eu é que me recusei a comprar.

- porque fez aquilo lá fora? – falou o homem grande com cara de confusão. Era um cara robusto, com uma grande barriga. Ele devia ter uns cem quilos. Parecia cansado e intrigado. Estava tão suado quanto eu.

- eu não sei… - falei pausando – …eu só pedi um copo de água da torneira. Eu não posso pagar quatro dólares por água. Andei o dia inteiro procurando por emprego sem sucesso. Essa nota de cinquenta que o senhor viu é tudo o que tenho para poder comer até o fim de semana. O homem ficou olhando para mim e coçou o nariz pensativo.

- no que estava pensando em trabalhar? – falou ele estendendo a mão e eu entreguei o currículo para ele.

- estava pensando que talvez… sei lá… assistente na cozinha – falei olhando em volta. Era uma lanchonete então era um lugar bem mais calmo do que um restaurante. Havia alguns funcionários preparando comida, sucos e montando tortas que pareciam apetitosas.

- aqui não tem antigos empregos, só detalhes de todos os prêmios que ganhou quando estava no colegial. Aluno do ano, Melhor redação, orador de classe…

- é que esse seria meu primeiro emprego – falei interrompendo-o –Digamos que nunca tive a chance antes – falei apontando para a garra – tudo o que estou pedindo é uma chance. Não pela garra ou por pena. Uma chance por mim mesmo.

O homem pareceu pensativo.

- qual é o seu nome? – perguntou ele com cara séria.

- Stanley Ant… Echevarria – tive que mentir o meu sobrenome porque não queria que ninguém soubesse meu nome verdadeiro caso alguém aparecesse me procurando. Como meu pai ou meu irmão.

- aqui diz Anthony – falou ele apontando para o currículo.

- erro de digitação – falei tentando disfarçar a mentira.

- sei… - falou o homem não acreditando – olha Stanley ‘Echevarria’ – falou ele fazendo aspas com os dedos – eu realmente não posso te colocar como ajudante de cozinha.

- por causa da minha mão? – falei cabisbaixo.

- Não. É porque não tenho vaga para assistente de cozinha. Esse cargo já está preenchido, mas se você quiser trabalhar na limpeza, na organização da cozinha e em outras coisas eu posso te contratar como ajudante geral.

- sério? – falei animado.

- sim. Sério

- obrigado senhor. Tudo o            que preciso é trabalhar. É só isso que eu quero.

- só me prometa uma coisa.

- o que?

- promete que não está metido em encrenca?

- porque eu estaria?

- você não disse seu sobrenome verdadeiro. Só existem dois motivos para alguém fazer isso: está metido em uma encrenca com a polícia ou está fugindo de alguém e não quer ser encontrado.

- o senhor é esperto – falei admitindo.

- e então?

- estou fugindo da família.

- tudo bem – falou ele dobrando a folha do currículo – eu vou confiar em você rapaz – ele a colocou no bolso.

- obrigado senhor – falei alegre apertando a mão dele – o senhor não vai se arrepender.

- você pode começar amanhã ás oito.

- obrigado – falei respirando fundo e me virando. Dei dois passos e me virei para ele de novo – posso te pedir um favor… será que pode não me registrar?

- não quer trabalhar de carteira assinada? – perguntou ele.

- não. Pelo menos por um tempo. Se eu assinar a carteira minha família vai descobrir onde estou.

- posso me meter em encrenca por causa disso, mas você parece ser um rapaz de confiança.

- muito obrigado senhor – falei agradecendo outra vez.

- só por um tempo. Depois tenho que te registrar e você trabalhar de papel passado.

- o senhor não sabe como está me ajudando. Obrigado.

A mulher que tinha me atendido e quase tinha perdido o emprego apareceu falando algo sobre precisar abastecer a geladeira com bebidas, mas ao me ver ela se calou e me olhou de cima em baixo..

- Julie, esse daqui é o Stan e eu o contratei como ajudante.

- tá de brincadeira, Né? – falou ela sarcástica.

- olha me desculpe pelo o que eu fiz…

- você me fez parecer uma idiota – falou ela mascando o chiclete.

- para de drama Julie – falou o homem olhando para ele bravo – além do mais ele disse que você foi rude com ele.

- rude? – Julie parecia enfurecida.

- e vamos ser sinceros o Stan aqui não é o primeiro a fazer uma reclamação sobre isso.

Julie não disse nada e apenas respirou fundo com raiva. Ela estava puta comigo.

- te vejo amanhã rapaz – falou ele indo até os fundos pegar alguns fardos de bebida para colocar na geladeira.

Julie e eu ficamos lá parados olhando um para o outro e é claro que eu estava sem graça.

- pois é… - estava desajeitado – espero que possamos esquecer isso e sermos amigos.

- nem ferrando – falou ela seguindo o homem para ajuda-lo.

- Okay… - falei sem graça respirando fundo.

Por fim acabei comprando uma garrafa de água mineral. Estava morrendo de sede no final acabei conseguindo um emprego então podia me dar ao luxo de comprar a água e até pegar um taxi para ir para casa. Sacudi a cabeça e sai da lanchonete me sentindo contente. O caminho de volta pareceu mais ensolarado, o céu mais azulado, os animais no lago mais números e a grama mais verde. É incrível como o mundo ao seu redor fica melhor quando você se sente melhor. Quando você sorri o mundo sorri com você.

A única coisa ruim de conseguir aquele trabalho é que não tinha ninguém com quem compartilhar. Senti vontade de ligar para casa e contar que tinha conseguido um emprego, mas eles iam tentar me convencer a fazer a cirurgia e eu tinha o péssimo hábito de não saber dizer ‘não’. Não queria decepcioná-los então era melhor aguentar alguns meses na solidão do que fazer uma cirurgia dolorosa. Pelo menos não agora.

PERSONAGENS

WATTPAD

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