Capítulo 24: Cruel Viagem | Conto: Cruel Sedutor

XXIV

Cruel Viagem

---

O

 rosto de Clyde sujo de sangue se contorcendo de dor quando levou uma facada por mim era a única coisa em minha mente. Conseguia diferencias sua voz dos gritos enquanto eu sentia o gosto de sangue na boca. A faca enfiada em meu próprio abdômen. Talvez agora esses assassinatos terminem já que o ‘profeta’ está morto. É engraçado como as coisas param de ter tanta importância quando se está tão perto da morte. A Dor, dinheiro, bens materiais, intrigas, raiva… nada mais importava. Era como se eu tivesse aceitado o meu destino. Sai de casa, deixei meus pais, vim para Orlando e de certa forma eu encontrei o que eu queria: Uma aventura, uma saída da vida monótona. Com duas mãos perfeitas ou não o meu sangue era da mesma cor do que o de qualquer um que havia sangrado naquela noite.

Quando eu era criança. Mais ou menos sete anos eu tinha um cachorro chamado Lester. Todos os sábados meus pais, meus irmãos, Lester e eu íamos ao parque para um piquenique. Nós forrávamos a toalha, colocávamos a comida, conversávamos, brincávamos, meus pais se amavam e Lester corria de um lado para o outro enquanto eu jogava o frisbee de um lado para o outro. Eu não me lembrava muito bem daquele dia porque de uma certa forma minha mente me obrigou a esquecer. Até aquele dia não entendi porque as abelhas eram tão disciplinadas e perigosas. Sabe o que acontece quando você ameaça a rainha? Todas as abelhas te picam até que você morre. Quando eu acertei a colmeia com o frisbee eu não imaginei que elas atacariam meu cachorro até ele morrer.

Lembro-me de gritar – Lester! Lester! – enquanto as abelhas o atacavam. Meu pai me pegou e tapou meus olhos tentando me reconfortar enquanto elas machucavam meu cachorro. O matavam. Meu cachorro chorou até que não chorou mais.  Lembro-me de estapear meu pai empurrando-o querendo ver se Lester estava bem, mas meu pai não deixou. Nick, Casey, minha mãe e eu fomos para dentro do carro enquanto meu pai caminhou até o cachorro morto. Nick me segurou não me deixando sair.

Ele era grande com os pelos castanhos e olhos amarelos. Muito peludo. Sempre que me lembro dele eu o vejo com a língua de fora obedecendo às ordens para ganhar uma guloseima. Aquela foi a primeira e última vez que tive um animal de estimação. Não porque meus pais não me deram, mas porque eu não quis. Qual o sentido de amar algo se ele morre abandonando você?

Boa noite Orlando. Vamos falar agora com a Repórter Billie Gilbert que está em frente ao Hospital Regional Medical Center. Hoje é o aniversário de dois meses do sequestro e tortura de dez pessoas. Os crimes que inicialmente haviam sidos atribuídos a um ‘assassino em série’ acabou por fim sendo atribuídos a um culto existente na cidade de Orlando, Flórida. Culto é uma homenagem prestada ao que é considerado sagrado ou divino. A maneira através da qual uma divindade é adorada. Nos tempos contemporâneos estimasse que existam mais de dez mil cultos espalhados pelo mundo. A maioria deles inocentes.

O perigo está no culto que julga estar em um mundo corrupto, e pretende ter a verdade como patrimônio seu e que promete ter a solução para todos os problemas da humanidade. Os membros desses cultos são submetidos a um regime autoritário, imposto por um líder “iluminado”, que lhes dificulta o senso crítico com falsas promessas de uma nova terra. A insegurança do homem contemporâneo, que sente angústia diante da crise da sociedade se mistura a uma mente cansada e infeliz e acaba cedendo, quando alguém, em nome de um poder superior o acolhe e lhe propõe certezas e garantias - ainda que fantasiosamente fundamentadas.

O líder desses cultos geralmente tem uma visão deturbada da vida ao qual eles aplicam á suas filosofias procurando assim disseminar suas ideias através de um grupo de pessoas que compartilham de seus pensamentos. Através dos tempos temos exemplos de cultos que acabaram se tornando violentos em nome de um bem maior. Em 1978 Jim Jones líder do “Templo dos Povos” fez com que mais de novecentas pessoas se suicidassem, dentre elas mais de trezentas crianças. As que se recusaram a tomar o veneno foram assassinadas pelos guarda costas de Jim Jones chamados de ‘Anjos’. No ano de 1995 o culto japonês chamado de “Ensino da Verdade Suprema” provocou um atentado com gás tóxico no metro de Tóquio, matando dez pessoas e ferindo cerca de cinco mil.

Nos anos 2000 cerca de oitocentas pessoas que estavam envolvidas com o culto “Movimento Pela Restauração dos Dez Mandamentos” morreram carbonizadas na sede de seus encontros em Uganda na África. Antes de cometerem o suicídio o líder da seita os incentivou a abandonar os seus bens materiais. Em 2017 membros do culto conhecido como “A Colmeia” sequestrou dez pessoas, dentre elas uma criança, e as torturou durante horas em um bairro nobre da cidade de Orlando. No fim da noite que ficou conhecida como ‘A Noite do Enxame’ nove pessoas foram resgatas com vida. Infelizmente uma das vítimas foi brutalmente esfaqueada no abdômen. A vítima chegou a ser resgatada com vida, mas morreu na ambulância a caminho do hospital.

A repórter Billie Gilbert respirou fundo antes de continuar. Ela piscou os olhos lentamente.

- a vítima – O policial Omar Clair Winstead – foi esfaqueada doze vezes no abdômen antes que os membros do culto fugissem – de volta ao Estúdio Onze com Trisha Takanawa.

- Obrigada pelas informações Billie Gilbert – falou a repórter com a feição apreensiva – apesar de todas as outras vitimas terem sobrevivido, Stanley Illtyd Anthony de vinte e quatro anos, permanece em coma após ter auto-infligido uma facada no abdômen em um ato que foi chamado de ‘Heroico’ perfurando um de seus rins. Stanley sofreu uma cirurgia e foi colocado em coma por duas semanas. Infelizmente Stanley não acordou mesmo após o coma induzido ter sido suspenso. No aniversário de dois meses desse atentado pessoas solidárias fizeram um altar em frente ao hospital acendendo velas e deixando flores em respeito á família e amigos de Stanley. Curiosamente foram os próprios assassinos que chamaram pela emergência já que quando chegaram à cena do crime todas as vítimas estavam desmaiadas.

- nós sentimos muitas saudades dele – era o pai de Stanley, Rodrigo Collier Anthony – no momento tudo o que estamos fazendo é orando para que o nosso filho acorde e fique bem – o pai de Stanley estava abraçado com sua esposa e mãe de Stanley, Cassandra Sorenson Illtyd, que estava com lágrimas nos olhos – tudo o que querem os é justiça.

- é o que todos querem – falou a repórter – que seu filho fique bem.

A reportagem mostrou a faixada do hospital mostrando um pequeno grupo de no máximo quinze pessoas olhando para uma foto de Stanley que havia sido colocado junto á velas, flores e até um urso de pelúcia que foi de Stanley quando ele era criança.

Em um mundo perfeito eu estaria bem. Estaria vivo, um dos meus rins não teria sido perfurado, minhas duas mãos seriam exatamente iguais e eu nunca teria fugido de casa. Eu não sei se me arrependo de ter fugido ou de ter conhecido as pessoas que conheci. O que eu sei é que não sentia mais dor. Não sentia nada. Eu usava uma túnica que mais parecia um manto branco que sóbria meu corpo enquanto eu caminhava pelos corredores da delegacia. Não havia ninguém além de mim. Eu meio que conseguia ouvir vozes como sussurros, mas não passavam de alucinações. Por algum motivo eu não conseguia sair daquele andar. Do andar da academia e do vestiário. Eu me sentia preso lá.

Era difícil medir o tempo quando não se sabe ao certo se é dia ou noite. O tédio não me possuía e tudo o que eu sabia era que estava sozinho. Completamente sozinho. Às vezes sentia que um ano tinha se passado. Em outros momentos parecia que apenas dez minutos se passaram desde que eu havia chegado lá. Falando nisso; como foi que eu cheguei lá? Não tinha ideia de como havia chegado lá. Tudo o que sabia é que tinha uma grande cicatriz do lado esquerdo do meu corpo como se eu tivesse sido cortado e algo tivesse sido retirado de mim. Não era como se aquele fosse um lugar ruim de se estar. Era calmo e quando olhava pela janela tudo o que via era uma densa neblina que me impedia de olhar para mais longe.

a única coisa ruim daquele lugar é que toda vez que entrava no vestiário eu via uma criatura medonha usando uma túnica preta com uma máscara com duas mãos e um olhar demoníaco. Toda vez que entrava ela estava lá. Eu não sabia de onde a conhecia, mas sabia que ela era má. Ela ficava lá parada me encarando.

- tem alguém ai? – perguntei chegando à porta do vestiário novamente. Ao entrar vi a criatura lá parada. Em alguns momentos podia jurar que as duas mãos que saiam da máscara movia os dedos – quem é você? Porque estou aqui?

A pessoa fantasiada levantou as mãos e retirou a máscara. Era eu. Era como olhar em um espelho. O meu gêmeo sinistro piscou para mim sereno..

- quem é você?

- eu sou você – respondeu a criatura que tinha o meu rosto.

- o que eu estou fazendo aqui?

- você não se lembra?

- lembro do que?

- você está em coma – falou o outro eu me fazendo sentir algo. Pela primeira vez eu senti um aperto no coração e a minha cicatriz começou a arder como se eu sentisse aquele corte ser feito.

- não. Como?

- não importa como você veio parar aqui. O que importa é o que você vai fazer em relação a isso.

- como assim? – perguntei me sentando em um dos bancos.

- você tem três opções – falou a criatura apontando para os chuveiros – você por ir adiante – em seguida ela apontou pra baixo – você pode ficar aqui ou… - a criatura apontou para frente. De alguma forma a parede havia desaparecido e eu conseguia ver o elevador – você pode voltar.

- o que acontece se eu for?

- você morre. Eu não posso dizer o que você vai encontrar se for a diante. Ninguém pode. Ninguém que foi jamais voltou. Você não é obrigado a seguir a diante. Você pode voltar.

- para onde?

- eu não posso dizer. Ninguém que veio até aqui se lembrou do que aconteceu para cegarem aqui. Elas carregam as cicatrizes, mas lhe faltam as memórias. Se você conseguiu essa cicatriz lá podemos dizer que não é um lugar muito bom.

Toquei minha cicatriz e senti ela queimar de novo.

- e se eu ficar aqui?

- você pode – falou a criatura colocando novamente a máscara. De algum jeito a boca da máscara se moveu – Aqui não tem sofrimentos. Aqui não tem dor. Aqui não tem prazer. Você pode ficar aqui se quiser. Dormente para todas as dores. Você nunca vai descobrir quem sou eu – falou a criatura movendo as duas mãos da cabeça – e as pessoas do outro lado serão obrigadas a nunca mais ouvir sua voz. Apenas a sua fraca respiração até que você tenha oitenta anos ou noventa… e você morra.

- e se eles desligarem os aparelhos? Ai eles escolhem por mim.

- eles não vão desistir de você – falou a criatura dando as costas para mim e começando a andar na direção dos chuveiros – o que é um desperdício já que você está disposto a desistir deles e ficar aqui por toda a eternidade.

A criatura caminhou em direção aos chuveiros até desaparecer. Senti raiva porque toda aquela conversa não tinha me levado a lugar nenhum. Respirei fundo e senti um arrepio. Cócegas nos meus lábios. Senti meu rosto pinicando. Como se fosse uma barba me espetando. Lambi os lábios e senti um gosto diferente. Não era o meu gosto. Não sabia o que era, mas me senti… feliz?

- eu não voltaria se fosse você – falou alguém atrás de mim. Olhei para trás e vi outra criatura com o rosto negro e duas estrelas nos olhos.

Me levantei assustado e dei a volta vendo a fantasia. Não me era estranha.

- quem é você?

A criatura tirou a máscara e mais uma vez eu vi meu rosto. Era eu novamente.

- o que está acontecendo?

- você não sabe quem nós somos. Então todos nós seremos você.

- quem vocês são? Vocês quem?

- não importa – falou o meu sombrio eu com um sorriso sarcástico – de qualquer forma todos nós somos você. Partes de você.

- vocês são minha consciência?

- consciência? Você dormiu com o marido dela na casa dela! Você não tem consciência. Você é tão mal quanto nós.

- eu não sei do que você está falando – falei colocando as mãos na cabeça confuso com tudo quilo. De quem eles estavam falando? Quem era eu?

- não ouça ele! – falou uma figura com máscara feminina e cabelos ruivos – ele só está tentando fazer você se sentir culpado.

- e você? Quem é?

- eu preciso mesmo tirar a máscara? – falou a figura feminina.

- não. Deixa. Dois de mim já é o suficiente – falei voltando a me sentar – quem é você? Não digo… de pessoa, mas sim… que parte de mim?

- seu ego – falou ela se sentando ao meu lado e acariciando minhas costas – Não se sinta culpado por amar. Aquele dali é a ‘Culpa’ – falou a garota apontando para o palhaço que voltou a colocar a máscara.

- eu não sei do que vocês estão falando.

- nosso cérebro é traiçoeiro Stan – falou a garota se levantando – se você pensa em algo ruim o seu cérebro irá jogar mais e mais coisas ruins até que você se destrua de dentro pra fora. Não se sinta culpado pelas coisas as quais você não se arrepende.

- Okay. Eu não me sinto.

Quando eu disse isso dois palhaços apareceram na minha frente. Eles usavam apenas as máscaras. As fantasias estavam jogadas de lado e eles estavam fazendo sexo no chão. Os dois olhando para mim. Dois sorrisos macabros. Eu não sentia nada ao ver aquela cena, mas de certa forma me intrigava a forma que ele penetrava o pênis em seu ânus.

- eles são a libido – falou a garota colocando a mão em minha perna – não tenha vergonha.

- porque eu teria vergonha? Eu nem sei o que eles estão fazendo.

- então porque não para de olhar? – falou ela virando meu rosto.

Nesse momento a criatura que se foi pelo banheiro voltou e ficou parada de pé. A uns duzentos metros de mim me encarando.

- eu não sei o que tudo que está acontecendo aqui tem a ver com o que tem do outro lado – falei apontando para o elevador.

- estamos tentando abrir seus olhos – falou a garota – você está aqui porque sue corpo não está lutando o suficiente porque ele não quer sobreviver. Você não quer sobreviver.

- eu estou confuso e com tudo o que estou vendo aqui eu não sei se quero viver.

- você precisa ter fé Stan. Não precisa ser em Deus, mas precisa ter fé. Tenha fé em si mesmo, tenha fé nos outros. Tenha fé no mundo.

Nesse momento olhei para minhas mãos e para minha surpresa as duas estavam iguais. Cada uma tinha três dedos. Eu movi os dedos e respirei fundo avaliando a mão virando-a de um lado para o outro.

- pensei que quando morrêssemos seriamos perfeitos como anjos ou algo do tipo.

- você é perfeito – falou a criatura segurando minhas duas mãos – foi assim que você foi feito. Lá fora você tem o livre arbítrio para mudar, mas aqui você volta a ser como deveria.

- aqui é o paraíso?

- aqui é sua mente – falou a garota se levantando – nós estamos bem aqui – falou a garota colocando o dedo no meio da minha testa.

- e porque aqui? Eu sei que aqui é a delegacia onde trabalho. Na verdade é a única coisa que me lembro.

- porque você acha que se lembra daqui?

- eu não faço ideia.

- ele é burro – falou o palhaço intitulado ‘Culpa’.

- porque foi aqui que vocês se beijaram pela primeira vez – falou a garota se jogando contra o armário como se alguém a segurasse – foi aqui que você sentiu os lábios dele pela primeira vez. Foi aqui que ele beijou seu rosto enquanto a barba o pinicava e você sentiu um arrepio na espinha. Senti novamente aquele comichão no rosto e coloquei a mão em cima.

- eu o amo – falei respirando fundo.

- você se lembra dele?

- Não. Não me lembro – falei me levantando – mas eu sei que eu o amo.

- você voltaria por ele? Mesmo sem saber quem ele é? Porque isso seria fé. Você não o vê, você não consegue tocá-lo, você não sabe como ele é, mas consegue sentir – falou ela colocando a mão em cima da minha.

- e se ele não sentir o mesmo que eu?

Nesse momento a criatura negra levantou a mão com uma faca e esfaqueou meu braço deixando a faca. Aquilo não doeu. Eu mal pude sentir. Na verdade fiquei mais incomodado com a faca ali enfiada em meu braço d oque com a dor. A garota tirou a faca jogando-a no chão.

- você precisa ter fé. Não importa se você acha que ele não sente o mesmo. O que você sente é real.

- ele está certo – falou o palhaço com estrela nos olhos – porque voltar se você nem sabe se ele te ama? Ele nem estava disposto a dizer nada á esposa.

- é complicado! – falou a garota olhando para o palhaço – ele tinha uma vida com ela. Ales ficaram juntos por anos. Você não pode pedir para ele simplesmente deixa-la. A vida não é uma novela. Ela é a mãe do filho dele.

- espera, espera – falei tentando entender – esse homem que me ama e que eu amo é casado? Comprometido?

- com uma mulher – falou ‘A Culpa’ – você nem sabe se ele gosta de homem.

- eu garanto que ele gosta – falou uma das criaturas deitadas no chão fazendo sexo. Ela deu uma risada e eles continuaram a tranzar com mais força. A criatura com mãos na máscara me encarava e não dizia nenhuma palavra sequer.

- porque ele não fala nada? – falei me aproximando dele.

- porque você o conhece – falou outra criatura chegando. Dessa vez um palhaço com bocas onde deveria haver olhos.

- quem é você?

- Sou seu intelecto – falou ela parando ao lado da garota.

- eu o conheço?

- é claro. Você reconheceria a voz se ele dissesse algo. É por isso que ele só fica ai parado. Ele é a sua Consciência.

- minha Consciência?

- sim. Aquela parte de você que julga o que é certo ou errado baseando-se no seu ponto de vista moral. É um mistério. Assim como a Consciência de todos que estão á sua volta. Você á conhece, mas não de verdade.

- ele tirou a máscara uma vez e eu vi o rosto dele. É o meu rosto assim como todos vocês.

- nós temos rostos. Nossos próprios rostos. O seu cérebro consegue trabalhar com o que você conhece e com o que você se lembra. Você não consegue se lembrar dos nossos rostos porque você nunca os viu de verdade.

Em minhas pernas senti um comichão. Ao olhar para baixo vi Chester. O gato que Mya e eu tínhamos adotado e que tinha desaparecido desde o ataque ao prédio. Eu o peguei nos braços e acariciei suas orelhas. Ele começou a ronronar.

- estava com saudades de você Chester! – falei rindo – porque eu me lembro dele?

- vai perguntar pra mim? – falou a garota se sentando – eu não sei como o cérebro humano funciona, mas se você se lembra dele deve ser porque ele importa muito pra você.

- mas eu fiquei com ele só a uma semana. Como eu posso amar ele tanto?

- o amor funciona de uma forma misteriosa – falou ela passando os dedos no armário enquanto se afastava de mim – um dia, uma semana, um ano… quem se importa? Amor é amor.

- e então? Decidiu? – perguntou o palhaço ‘Intelecto’ se sentando do meu lado direito enquanto ‘Culpa’ se sentava do lado esquerdo.

- eu não sei.

- se mova – falou um dos palhaços que fazia sex olhando para mim – pra esquerda ou pra direita. Mas você precisa se mover – falou o palhaço sem movendo mais e mais rápido sentado no colo do outro palhaço que o penetrava.

- é como ele disse. Você pode ficar aqui – falou a garota tirando uma faca de trás das suas costas – mas se você escolher ficar aqui tenha em mente de que você nem sempre sonha. Ás vezes pode ser um pesadelo.

Olhei para baixo e Chester estava morto. Sangue escorria de seu pescoço. Eu o joguei no chão e senti uma pontada nas costas quando a faca da palhaça entrou na minha barriga. Bem em cima da cicatriz que estava queimando. Comecei a sentir um gosto estranho na boca. Era sangue. Me levantei e olhei em volta, mas não havia ninguém. Eu estava novamente sozinho com a faca enfiada na minha barriga com as mãos segurando-a. Não foi a palhaça que a enfiou. Fui eu mesmo. Estava de pé novamente próximo á mesa. Omar estava a minha frente e Todos gritavam desesperados ao ver que eu tinha esfaqueado a mim mesmo.

Deslizei o olhar por todos na mesa, mas cai antes que conseguisse ver o rosto de Clyde. Já no chão vi meu irmão cair próximo a mim. Ele parecia desesperado. Estava com a boca amordaçada e sabia que se pudesse ele me daria sua própria vida. Me doaria cada uma das partes do seu corpo se isso salvasse minha vida. Senti um calafrio no corpo. Minhas mãos geladas, minha boca com o gosto de sangue. Foi quando vi uma nuvem de fumaça. Os palhaços estavam borrifando alguma coisa no ar. Não sei o que foi, mas fez com que todos desmaiassem. Eles acenderam a luz vermelha novamente e em seguida fugiram.

Eu estava novamente naquele corredor entre os vestiários e o elevador. Eu não sabia o que fazer. Será que valia a pena viver? Viver por ele? Viver para amar? Qual o ponto de amar se um dia eles morrem?

- e então? – perguntou o palhaço com estrelas nos olhos – o que você vai fazer? Por onde você vai?

- eu não posso pensar mais um pouco? Acho que ainda tenho tempo.

- me responda. Pra você… quanto tempo passou?

- não sei… dois dias? Sinto que foram dois dias.

- A mente de moto mundo funciona de um jeito diferente. Por isso não devemos menosprezar a dor do outro. O que não te machuca tanto talvez seja a última gota para o outro. Ficar sozinho consigo mesmo é o pior pesadelo de muitos porque um minuto lá fora pode ser uma eternidade aqui dentro. Da mesma forma que dois dias aqui dentro podem ser dois meses lá fora.

- se eu escolher não voltar – falei apontando para os chuveiros – eles vão ficar bem… não é?

- eu não sei. Eu sou apenas você. Só sei o que você sabe.

- será que dá pra você dizer algo de útil? Algo que realmente me ajude a tomar a decisão? Eu não ficar aqui pra sempre. Ou eu vivo – falei apontando para o elevador – ou eu morro – falei apontando para os chuveiros. Qual vale a penas?

- “Se vale a pena viver; e se a morte faz parte da vida; então, morrer também vale a pena” – o palhaço saiu andando até que despareceu do meu campo de visão.

Respirei fundo e segui na direção. Não sabia o que me esperava do outro lado, mas não podia ficar ali para sempre imaginando o que poderia ser. Eram duas opções desconhecidas, apenas escolhi a que me dava menos medo. Acho que no fim de tudo vou ficar bem. A minha cicatriz já não ardia mais e espero que continue assim. Ansiava pelo seu beijo, todo mundo teria um beijo como aquele pelo menos uma vez nada. Era inevitável

- e se eu estiver tomando a decisão errada? – perguntei olhando para trás – e se ele me machucar? – A porta do elevador se abriu atrás de mim.

- A verdade é que todo mundo vai te machucar… – falou o palhaço parado do outro lado olhando para mim – …O que você tem que se perguntar é: Ele é uma dessas pessoas pelas quais vale a pena sofrer?

Antes que pudesse entrar no elevador senti meu corpo sendo puxado como um forte vendo que me jogava lá pra dentro. Como se alguém segurasse em minha mão e me puxasse lá para dentro. Minha visão ficou embasada à medida que me sentia em uma enorme ventania. Deixei-me levar e meu corpo voou contra o elevador me jogando em uma enorme escuridão. Não conseguia ver nada em volta. A única luz que via era a do elevador aberto, mas ela ficava cada vez mais pequena a medida que meu corpo era jogado para trás. Senti que alguém segurava em minha mão esquerda, mas eu estava definitivamente sozinho naquele elevador.

Aquela sensação de dormência foi desaparecendo e minha cicatriz começou a me incomodar Não queimava como antes. Agora eu sentia que ela fazia parte de mim. Senti algo pinicando minha mão e novamente ouvi vozes. Eram como cochichos sussurrando para mim. Podia sentir o calor em meu ouvido. Podia sentir o cheiro. Vi que outra luz se aproximava de mim e dessa vez ela ficava cada vez maior. Senti em meu nariz o cheiro do seu perfume, do cigarro e sua mão pegajosa pelas rosquinhas que ele costumava comer todas as tardes.

- você não sabe o que aconteceu hoje… - falou uma voz grossa dando uma risada – Hoje quando fomos atender a um chamado de emergência Judy foi atacada por um cachorro que parecia mais um rato – Ele começou a rir – você teria morrido de rir se tivesse visto.

Minha cabeça doía muito. Meus olhos estavam fechados e aquela escuridão acabaria assim que eu permitisse dar um fim.

- me desculpa não ter aparecido ontem. Eu tinha muito trabalho burocrático no escritório. Você está fazendo falta. O delegado Hugo queria contratar alguém para o seu lugar, mas nós não deixamos.

- não tem problema – falei abrindo os olhos devagar movendo os dedos. Senti as mãos de Clyde segurando firme a minha.

- Stan? – falou Clyde se aproximando de mim – Stan? Você está me ouvindo?

- para de gritar – falei abrindo vendo um borrão á minha frente de pouco a pouco foi se transformando no rosto do homem que eu amava.

- Você está me ouvindo?

Balancei a cabeça afirmativamente e senti a barba de Clyde espetar minha boca quando senti seus lábios tocar o meu. Não consegui nem juntar os lábios para beijá-lo. Ainda nem conseguia ver direito. A última coisa de que me lembro era do ‘jogo’ que aqueles palhaços me obrigaram a jogar. Lembro-me de ter me esfaqueado para que tudo aquilo acabasse. Ouvi Clyde se levantar e abrir a porta do quarto do hospital gritando com as enfermeiras sobre mim: Ele acordou! Ele acordou.

Obrigado pelos comentários e pelos votos ;) De verdadeeeee :) Obrigado também pelos elogios que tenho recebido de vários de vocês. Feliz por estar sendo reconhecido.